sábado, fevereiro 19

Pegadas nas areias da vida

Dizem que na vida da gente algumas pessoas levam um pouquinho de nós enquanto outras deixam um pouquinho delas. São inúmeros os detalhes que aprendi com o namorado que mais me levou a sério até então... Ele é um virginiano típico no melhor sentido do significado do signo solar. Percebo que minha rotina ao acordar durante a semana começa pelo café da manhã para depois passar pelo banheiro, nunca antes sem um copo de água (graças ao médico velhinho da TV), rotina sugerida por ele anos atrás enquanto namorávamos... Sair sem banho para trabalhar nem pensar !

Nos conhecemos ao fazer uma viagem. Era um dos últimos dias do ano. O caminho fôra desviado especialemente para pegá-lo. Ele acabara de sair de uma fábrica que fôra visitar a trabalho. Usava terno e óculos escuro. Aparentemente possuía um "ar" muito sério para quem vinha badernando a viagem toda, de vestido hippie e chinelos (EU :-).

"- Xiiii ...... vamos ter que nos arrumar por lá mesmo porque estes dois aqui não vão rolar..."
"- É mesmo Andréa... lá deve ter uns caras mais interessantes !"
Foi minha conversa de pé de ouvido com uma amiga ao vê-lo pela primeira vez.

Sempre fecho a porta do apartamento com tranca antes de dormir, a segurança ao dormir é muito mais importante do que a segurança ao sair de casa, segundo ele, e portanto, segundo eu agora, é claro.

Passamos alguns dias juntos na tal viagem. Éramos seres muito diferentes. Ele profissionalmente bem sucedido, trabalhava em uma multinacional, eu uma mera professora da Rede Pública Estadual. Mas logo descobrimos algo que gostávamos de fazer em comum: caminhar quilômetros pela areia da praia, molhando os pés na água do mar. Fizemos uma caminhada longa e fomos discutindo o impacto ambiental da construção das hidrelétricas sobre o ecossistema. Eu tinha uma visão muito socialista utópica, ele mais "pé no chão". Eu mais fervorosa, ele mais apaziguador, na discussão.

Riu muito quando no supermercado eu perguntei para todos que estavam conosco na casa:
"- A base tem alguma coisa contra pão Pullman ?"

Enfim, tudo que poderia enquadrá-lo na condição de metido, ele conseguiu reunir durante a viagem. Só queria comer em restaurantes caros (os BONS segundo ele). Foi o único que não foi à praia porque precisava trabalhar. Ficava seriamente impávido diante da música alta que fazia a todos dançar e chacoalhar as suspensões do carro. Foi e voltou de avião (pago pela empresa, é claro...). Era o único todo arrumadinho na noite do Reveillón, usava tênis novo com meias brancas em plena praia. Meu oposto total ! tanto que me inspirou, de propósito, marcar ainda mais as diferenças e passar a virada de ano com minha blusinha vermelha semi-tranparente, sem sutiã, saia jeans velha e havaianas., completamente desencanada.

Ninguém entende bem o porquê, mas só coloco gasolina Shell aditivada no carro até hoje. O “arzinho” fica sempre aberto para evitar acúmulo de poeira e.... no inverno o quente só pode ficar ligado até antes de esquentar as orelhas, para não ficar resfirada.... Ele me ensinou muitas coisas boas...

E foi ao pular as sete ondinhas que uns moleques molharam eu e uma amiga. Entramos na água. Tinha sido a noite que eu mais me dedicara à bebida até então. Muitas caipirinhas ! Quando saímos da água e vi aquele ser todo arrumadinho, e sério, no meio da bagunça de fim de ano, não me contive de indignação. Pulei no colo dele toda molhada e gritei:

"- Feliz Ano Novo !"

Um silêncio se fez entre os amigos ao redor. Todos esperavam pela fúria dele.... Mas inesperadamente ele começou a rir e disse:

"- Você não vale um centavo..."

Fiquei muito feliz, acabara de quebrar aquela máscara em forma de geladeira que ele usava.

Algumas frases dele foram sendo naturalemtne incorporadas às minhas por pura admiração:
“- Tem pergunta fácil ?”
“- Não gosto de frango e nem de derivados...”

O namoro foi muito bom enquanto durou. Às vezes sinto saudades das longas e minuciosas conversas, dos sonhos, dos filmes, dos roncos, das outras viagens que fizemos juntos, das caminhadas.... das risadas. Conseguimos estabelecer uma amizade na qual nos sentimos muito à vontade para conversar o que for atualmente. Hoje tenho a certeza do sentimento que sinto por ele, bem como a certeza que amar de verdade não significa necessariamente ficar junto de verdade. Trata-se de um bem querer mútuo, independentemente das nossas escolhas pessoais.

domingo, fevereiro 13

Presentes de aniversário !

O conheci em um grupo terapêutico. Muito inteligente e brincalhão, excelente jornalista e escritor. Mais falante do que eu. Foi o primeiro homem que vi chorar de verdade. Fiquei respeitosamente impressionada. Eu não era o tipo chorona, por mais que muitas coisas me machucassem profundamente. Quando pequena, ao ameaçar revelar a minha dor, papai dizia:
"- Não vai fazer papelão!"
As lágrimas eram interrompidas. Todos os choros desde então, foram engolidos. Até mesmo porque, as lágrimas nunca comoveram nem mesmo a mamãe.
Ao vê-lo chorar, percebi que meninos choram sim, mais do que isto, homens intelectuais e maduros choram, de verdade !
Eu sabia que em algum momento o foco do grupo se voltaria para as minhas dores, e que eu correria o risco de sentir o desconforto de segurar as lágrimas como sempre, ou de fazer o tal horrível papelão. Nenhuma das duas opções seriam boas... fiquei apreensiva algumas semanas. Mas aquele choro dele tinha sido a minha salvação....
Abri um berreiro !
Fiz um enorme papelão!
Inúmeras vezes !
O mais interessante foi que ninguém nem estranhou.
Ufa... como foi bom !
Hoje bem mais chorona, ganho um presente dele que me toca:
"Estava tentando montar uma mensagem de aniversário para você, mas o papo habitual da data querida, mais um ano de vida, parabéns, tudo isso me pareceu um tanto cansado e fora de propósito para pessoas que têm um sopro pessoal com poderes além do apagar das velinhas.

Fiquei procurando outra abordagem. Pensei na hipótese de que o aniversário deveria, sim, marcar, digamos, a abertura de uma nova e bem sucedida temporada na particularíssima peça, história ímpar da vida de cada um.

Convido você a tomar o centro do palco e encarar as diversas platéias que a gente enfrenta em cada episódio nos diferentes momentos e circunstâncias da vida. E lhes dizer algo assim:

- Por favor, aplausos! Sei que venho fazendo sucesso e se vocês não perceberam, que pena! perderam bons espetáculos...

Nada de apagar velinhas. Mas, sim, acender novas chamas. Faça valer o seu sopro como ares de vida e não de apagamento. Alimente as brasas da visão de vida como tarefa que devemos ter como desafio e prazer porque é nossa, exclusiva, e ninguém tem igual.

Tudo isso para desejar o brilhante início da nova temporada com programa de vida pontuado por êxitos capítulo após capítulo. E se algo ocorrer em desacordo com as suas expectativas e necessidades, reescreva o roteiro! Seja autora de sua vida! "
Muito obrigada, meu querido e humano chorão, pelo espetáculo que montamos em meu palco ! Sortudos serão os que assistirão ! :-)))))

domingo, fevereiro 6

Ou faz falta ao Amor conhecimento

Miguel de Cervantes
(tradução de Josely Vianna Baptista e Luis Dolhnikoff)
Ou faz falta ao Amor conhecimento,
Ou sobra-lhe crueldade, ou minha pena
Não se iguala à ocasião que me condena
Ao gênero mais duro de tormento.
Porém se o Amor é deus, ele é argumento
Que nada ignora, e existe razão plena
Em que não seja cruel. Quem, pois, ordena
A dor atroz que adoro e experimento ?
Se digo que é você, Filis, não acerto;
Pois tanto mal em tanto bem não cabe,
Nem há de vir do céu esta ruína.
Perto estarei da morte, isto é bem certo;
Pois ao mal cuja causa não se sabe
É um milagre acertar a medicina.