sexta-feira, janeiro 14

Profissionalismo pessoal

Eu achava que profissionalismo era significado de ausência de emoção. Por isso passei aproximadamente dez anos mostrando as Ciências e a Biologia para um bom número de alunos atrás de uma máscara que escondia minhas reais emoções. Devo ter sido, para a maioria deles, uma daquelas professoras que 'passam batido' pela nossa formação. Para alguns devo ter sido muito chata e exigente, para outros talvez engraçada, metida, compreensiva, arrogante, não sei... O que sei é que algumas turmas me foram, apesar da máscara, muito especiais.
Os professores se queixavam da bagunça da 6a.B da tarde do "Corujinha", mas os alunos me esperavam respeitosos e animadíssimos para as nossas aulas duplas. Adoraram a proposta do projeto piloto recém inventado, fazer um livro, e a levaram a cabo. No final do ano cada aluno tinha terminado o seu próprio livro (na verdade um caderno) de seu animal favorito, inclusive com fotos ! Lindos ! E sem bagunça !
Nesta mesma escola, em outro momento, resolveu-se que alguns alunos 'precisavam' de reforço. Inspirada na 'Sociedade dos poetas mortos' passamos longe dos livros, cadernos e salas de aula. Montamos um aquário, que ficou na porta da escola e foi cuidado pelos ditos 'reforçados'... Estes alunos foram vistos, após o 'reforço', explicando aos seus colegas o que era um ecossistema.

Do famoso 'Gegue' também trago boas recordações, dentre as quais destaco o dia que cheguei a noite com meu carro novo, recém emplacado, em substituição ao velho Fusca. Eu subia as escadas para entrar na sala de aula quando dois alunos me comprimentaram. Do segundo andar era possível ver o estacionamento.

"- Parabéns professora, nós estamos vendo lá embaixo o resultado do suor do seu trabalho !"
"- Ô loco mêu ! Vou ter que suar mais três anos ainda !"
Nos sorrimos... fiquei sem graça e emocionada ao mesmo tempo... e entrei na classe.

É preciso contar que se trata de uma escola da periferia de SP, localizada ao lado de uma enorme favela na qual muitos alunos moram. Me orgulha muito dizer, não pelo materialismo, mas pela atitude, que nem sequer um risco foi feito no meu carro enquanto trabalhei lá. Para ser sincera sempre me senti segura naquela escola, muito embora nos surpreendia, ao mesmo tempo que entristecia, saber que um ou outro aluno havia sido preso por assalto à mão armada.

Os alunos do supletivo também me proporcionaram uma experiência muito interessante. Quanto mais eu preparava as aulas, menos certo dava...

"- Professora, a senhora (sempre achei esta expressão horrível, mas percebi que é imutável na educação paulistana) viu a doença da vaca louca ?"
"- Pois então ? Quem viu ou leu a respeito ? Afinal o que é esta doença ? Qual o agente causador ? Quem sabe ?"

Nada tinha a ver com a programação daquela aula, mas não deixava de ser um importante conteúdo a ser aprendido, principalmente tratando-se de senhores e senhoras que não estavam alí para fazer de conta que aprendiam, e precisavam saber se era conveniente comprar carne para o almoço de suas famílias no dia seguinte.

"- Afinal professora, depois de toda esta discussão, a gente pode ou não comprar a carne no açougue amanhã ?"
"- Boa pergunta ! O que você acha ?"

A avaliação já estava sendo feita, eles já tinham aprendido. Inclusive os mais quietinhos que acompanhavam a discussão só com os olhos atentos.

"- Prova ? Para que vocês querem prova gente ? Estamos precisando provar algo a alguém ? Ah, é verdade tenho que preencher as targetas com notas... bem então faremos a prova na semana que vem, pode ser ?"

Ninguém, que simplesmente frequentava as aulas, precisava estudar. Eles tiveram o privilégio de eu estar no meio do mestrado trazendo informações fresquinhas. Não tinham tempo para estudar, mas sabiam as respostas, justamente porque eram as de suas próprias perguntas.

Ano passado outras duas turmas, formadas por alunos em dependência na Uninove, também foram especialmente importantes para mim. Eles chegaram com a revolta óbvia de quem fora reprovado. Dois dias depois as queixas foram seduzidas pela proposta de "ver o mesmo filme de forma diferente através de missóes possíveis, nas quais podia-se solicitar ajuda ao Tom Cruise na biblioteca". Eu não saberia dizer o que houve de diferente no processo ensino-aprendizagem, sei que no aspecto pessoal eu começava a me interessar por uma pessoa fora dalí. Esta pessoa se fez tão presente que serviu de estímulo triplicado para o meu trabalho. Objetivando (re)ver os conteúdos através de várias estratégias pedagógicas, montamos um filme na cabeça de cada um, ou pelo menos na da maioria. Foi muito divertido e estimulante. Não sei onde coloquei as velhas máscaras... Quando percebi já havia me envolvido emocionalmente com aquela alegria contagiante de quem descobre que aquilo que parecia inatingível, requer apenas vontade de aprender e gasto de alguns ATPs. Pela primeira vez fiquei triste ao terminar um curso e senti saudade dos alunos. Tenho no carro um cachorrinho de pelúcia que ganhei de três alunas que me faz lembrar de todos eles. Mas mais emocionante ainda é reencontrá-los. Invariavelmente eles abrem um sorriso amoroso e vêm me comprimentar, só para dizer, com o maior orgulho de si mesmos, que não só aprenderam como perceberam a importância do que aprenderam.

"- Sabe professora, lá no hospital que trabalho ninguém da enfermagem sabe porque exatamente as bactérias ficam resistentes aos antibióticos... Mas eu sei !"

5 comentários:

Anônimo disse...

Mais uma faceta do retrato de uma MULHER de corpo inteiro.Vc é linda.

Anônimo disse...

A minha heroína, depois do Romance Ideal, antes de Bellini e a esfinge e no meio da Amizade Psicoterapêutica!:)))))

Andréa disse...

Parabéns ! Acertou a temporalidade das histórias.

Anônimo disse...

Sim, porque são meras histórias .....

Anônimo disse...

FIM